TEXTOS CRÍTICOS

2014
Miragens, de Lucas Oliveira
Marco Buti - multiplicação e miopia 2
Entrevista para Marcio O. Fonseca
Entrevista para a Revista Graciliano - Alagoas
2013
Prêmio ARTE Ref Entrevista com a artista da semana
2011
DESENHADORA, por Lucas Oliveira.
OF SNAKES, MYTHOLOGY AND ABY WARBURG, by Stefanie Hessler
Entrevista ao site Colherada Cultural
VERDE AZUL AMARELO ROSA E BRANCO, por Fabiano Calixto
Poesias de Francesca Cricelli para as obras da exposição Encapelado
2010
Diálogo de Flora Assumpção com Marco Buti
Perguntas do Instituto Tomie Ohtake aos artistas selecionados para o Prêmio Energias na Arte


____________________

2014



FLORA ASSUMPÇÃO      Miragens. 2014

Texto crítico: Lucas Oliveira 
(curador independente, Assistente de Curadoria no MASP, trabalhou no MAM-SP, graduado em artes plásticas na UNESP e cursando filosofia na USP)

A exposição 'Miragens', individual da artista Flora Assumpção, apresenta um panorama de obras inéditas produzidas entre 2011 e 2014. Flora realiza um trânsito entre linguagens como desenho, gravura, fotogravura, vídeo, objeto e instalação. Além disso, recorre a recursos tecnológicos, a exemplo da gravação a laser e adesivos espelhados ou plásticos, que lhe permitem distender os limites entre as técnicas tradicionais e os materiais expressivos industriais. Cria corpo para que a solução material seja o elemento forte de conhecimento e aproximação dos trabalhos.
Nesse sentido, a ideia de “miragem” pode remeter a própria qualidade do material, sendo ele o conteúdo essencial de si mesmo, norte da experiência de contato com o trabalho de arte. Aspectos ópticos da luz, como a refração, o brilho ou a textura das superfícies, o espelhamento, a imersão na cena, tudo contribui para ampliar os sentidos e traduzir um ambiente psicológico das obras. Por outro lado, podemos entender “miragens”, nas palavras da artista, como “metáfora inevitável das ilusões humanas”. Afinal, o que são a curiosidade, o deslumbre e a ilusão se não sintomas do desejo?
A exposição é aberta com parte da série 'Pequeno Compêndio das Tormentas (Furacões e Mares)', na qual a artista reelabora a combinação que talvez seja a mais forte de sua trajetória: a estética funcional da máquina da natureza e o imaginário fantástico. Flora trabalha sobre imagens do sublime, aquelas que submetem a humanidade à sorte das formas mais imensas e destrutivas da natureza. Nestas fotogravuras e fotografias, a artista se apropria de imagens retiradas da internet. Tensiona com o conteúdo sublime das tempestades, dos maremotos, editando e manipulando as imagens. Flora retira as imagens de sua condição pública e as sequestra para o seu laboratório, submetendo-as ao processo artesanal longo e delicado que é gravar uma fotografia em camadas, corroendo o metal. Lado a lado, as ondas gigantescas e as nuvens parecem sugerir que a grandiosidade e a violência desses fenômenos possuem uma dimensão intimista, privada, secreta. Como se fosse possível reduzir a sua fúria e estudá-la detalhe por detalhe, como uma célula ou sistema filosófico.
Em 'Salar', Flora nos dá uma pista do seu interesse pelas paisagens da América Latina. Bem como em 'Montanha Construída', ela propõe que as experiências corporais e de percepção visual sejam o parâmetro do espectador para transportar-se para esses espaços, fazendo do corpo a régua para medir e provar uma geografia. Novamente, retira-se da natureza alguns elementos, alguns detalhes que permitem internalizar a referência da paisagem e do espaço, fazer deles um exercício ficcional e de percepção. Em ambos, a ideia do “sem fim” e da camuflagem é reiterada pela captação das texturas, da umidade ou da aridez.
As séries 'Engrenagens', 'Serpentes Negras' e 'Spectros são aquelas que, de maneira mais evidente, antecipam a noção de “máquina”, sempre presente na trajetória da artista. A ideia de engrenagem, de maquinário, decorre da observação e do uso que Flora faz de adereços do vestuário, malhas de metal, correntes, joias, bijuterias etc. É importante considerar também que há aqui uma influência vibrante da literatura fantástica de autores como Jorge Luís Borges, Júlio Cortázar e Gabriel Garcia Márquez. Criam-se simulacros, máquinas de criar desejo. 
Na série Spectro, onde encontramos imagens de criaturas que parecem misturar-se à superfície das folhas de ouro e prata, propõe um momento único e vertiginoso com cada imagem. Não são gravuras, não são objetos, mas um encontro, um tensionar entre a sedução da matéria e o movimento da forma. Qual é a forma do ouro; qual é a matéria do monstro. Estas séries provocam a sensação intensa de adentrar uma situação de estudo, de laboratório, na qual o processo criativo de Flora é bastante palpável, simples, e sendo investigação, convida a nós, os funcionalistas, a uma experiência sensível de saber.
Da mesma maneira, as séries 'Animais Simbióticos' e 'Fósseis' possuem um forte componente ficcional. São criaturas míticas cujo enigma está salvaguardado pela dimensão do espelho, pela segurança do cubo acrílico gelado. 
Extrapolando o plano bidimensional e trabalhando com o objeto, Flora nos brinda com uma amostra da série das 'Piscinas', uma transferência da iconografia e dos cenários ficcionais míticos, sagrados e fantásticos para uma experiência de contato com a natureza - a água - totalmente controlada, retraída. A água sem movimento é como o tempo parado, sem vida. 


Se o tempo fosse parado e nos lançasse a um estado de suspensão e vertigem; se o fluxo da água pudesse ser rompido pela lógica do objeto, haveria uma tentativa imediata de resposta na obra final da exposição. A instalação 'Vertigem do Mar' responde a essa paralisia com a expansão do tempo, uma experiência de imersão corporal sem fim. Note, porém, que as sequências das ondas não são diferentes do modelo de produção industrial, de repetição, contenção e estudo, como o é a 'Piscina'. A natureza e a máquina, no limite, seriam apenas efeitos da percepção imediata.

____________________

habitar a paisagem   CLEIRI CARDOSO

outras naturezas, outras miragens   FLORA ASSUMPÇÃO
paisagens gráficas   ELAINE ARRUDA


Exposição que apresenta três individuais simultâneas onde as artistas mostram trabalhos que abordam a paisagem e as relações do homem com a natureza, assunto comum em seus percursos, além da prática da gravura combinada com outras linguagens, tais como vídeos, fotografias, objetos e performance. A exposição inclui trabalhos resultantes de suas pesquisas de mestrado no Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
                                       
Multiplicação e Miopia 2
Marco Buti        artista e professor do Departamento de Artes plásticas da ECA-USP

                O geógrafo Denis Cosgrove propôs abordar a paisagem com os mesmos instrumentos críticos usados para a literatura e a arte. As três artistas reunidas nesta exposição têm a paisagem como referência, se não exclusiva, predominante. Mas não poderiam adotar a mesma posição do pesquisador: elas se manifestam através de imagens, linguagem que demanda meios materiais e técnicos, o fazer artístico, em suma. Impossibilidade de controle e consequente imprevisibilidade: estas características fundamentais da paisagem parecem ter se incorporado em boa parte das operações mobilizadas para concretizar os trabalhos aqui apresentados.
                Uma História da Arte voltada quase exclusivamente para os resultados de pintura, escultura e suas expansões contemporâneas, obras únicas ou tratadas como únicas, destinadas a espaços fixos, pouco ajuda a compreender a imagem como processo, resultado provisório de procedimentos nem sempre exclusivamente artísticos. Tampouco a noção pueril do fazer do artista como habilidade. O campo da multiplicação sempre se apoiou numa organização mais industrial, onde as técnicas devem funcionar, de maneira controlável. No entanto, as mesmas técnicas podem se tornar pouco previsíveis, em função de solicitações poéticas alheias ao uso padronizado. O que aqui encontramos nos bastidores das imagens são pensamentos em busca do meio e processo exatos, dentre os disponíveis e possíveis. Aquele que, espera-se, condensará a maior carga poética. A imagem, mesmo abstrata, só pode ser resultado de operações concretas.
                Esta questão tem sido descurada, na paisagem de uma arte contemporânea cada vez mais controlada, previsível e discursiva. Não se nota quando a peça apresentada, de acabamento impecável, é o único resultado aceito pelo artista após múltiplas tentativas frustradas, que talvez não poderá ser repetido. Como podem coexistir contemporaneamente meios digitais usados de forma pouco profissional, uma indústria em extinção como os estaleiros de Belém, mas com equipamentos adaptáveis para a impressão de estampas de grande formato, e a corrosão de matrizes pela água do mar. A exigência de usar precisamente a fotogravura, técnica aperfeiçoada no séc. XIX, e raramente praticada em nossos dias, para a realização final de imagens de fenômenos naturais compiladas na internet ou fotografadas frente aos fatos.
                Cosgrove aponta a presença da história na paisagem. Na paisagem como forma de arte, grande parte dos significados está no confronto entre as ações humanas e os ciclos naturais. No meio artístico brasileiro, o envolvimento com todos os aspectos da realização artística, e não apenas com a concepção, provém de necessidades econômicas, sociais, geopolíticas, técnicas, que se impõem à imposição abstrata das ideias fora de lugar.
                Sem contar, é claro, a simples alegria do trabalho.

exposição 14/11/2014 a 07/02/2015
conversa com as artistas e os convidados Marco Buti e Claudio Mubarac - 07/02/2015 11h às 13h
Oficina Cultural Oswald de Andrade / São Paulo-SP

____________________


Entrevista para Marcio O. Fonseca

Quem é Flora Assumpção? nascimento, trabalho, família, infância, juventude, experiências fora da arte, casamento etc
Sou mineira, mesmo vinda de família paulista, principalmente de São Paulo capital e da baixada santista, pois nasci e cresci no sul de Minas Gerais, em São Lourenço. Meus pais se mudaram para lá um pouco antes de eu nascer, justamente pensando em criar filhos em cidades saudáveis, não poluídas, com crianças correndo e brincando na rua até a noite, com alimentação natural etc. Eu me mudei para São Paulo quando entrei na faculdade de artes visuais, aos 17 anos. Acabei ficando, é onde moro e trabalho principalmente, até pelas necessidades da profissão, pois o circuito de artes visuais acontece principalmente São Paulo, no Rio, e outros grandes centros. Na minha cidade, quase ninguém tem ideia do que eu faço. Existe sim um buraco, muito específico e elitista, do qual as artes visuais ainda não conseguiram sair. Felizmente, o circuito vem se expandindo e cada vez mais cidades têm seus circuitos locais. Conheço um pouco estes outros circuitos através da participação em salões, viagens e pelos artistas que a gente vai conhecendo por este caminho. Com minha segunda família, que é a que a que ganhei através de meu esposo Flávio Lamenha (que também é artista e fotográfo especializado em documentação de arte), nos últimos anos estou conhecendo mais um circuito nordestino (Recife, Maceió, João Pessoa), este ano mesmo fiz 2 exposições que gostei muito de ter feito, uma no MAMAM - Recife e outra na Pinacoteca de Maceió.

Como a arte entrou em sua vida?
O início de minha educação foi em escola Waldorf, cuja pedagogia minha mãe pedagoga pesquisa. Então desenhei desde muito pequena. Meu pai também desenhava muito quando eu era criança, pintava como hobby. Na adolescência passei por um período de colecionar quadrinhos e foi quando o desenho voltou a ganhar minha atenção. E fui praticar num ateliê de pintura. Mas isso falando apenas das artes visuais, pois a literatura e o cinema também eram grandes interesses do meu pai e por isso cresci com o hábito de ler e tive contato com grandes obras do cinema, a despeito de ter crescido numa cidade tão pequena e limitada nos quesitos bibliotecas e cinemas. O meu trabalho é muito influenciado/inspirado por outras artes, como literatura, arquitetura e música, além de mitologias, religiões e ciências.

Qual foi sua formação artística?
Inicialmente aprendi a pintar a óleo, desenho com pastel oleoso e seco, nanquim, aquarela etc com um professor particular, antes da faculdade quando ainda morava em Minas, na época da escola, fim do ensino médio quando me preparava para o vestibular. Fiz a graduação em artes visuais na ECA-USP e este semestre defendi meu mestrado também em artes visuais no mesmo Departamento de Artes Plásticas na USP, sob orientação de Marco Buti. E alguns cursos extras que a gente vai escolhendo pelo caminho.

Que artistas influenciam em sua obra?
Theo Jansen, Anish Kapoor, Liliana Porter, Kate MccGwire, Andy Goldsworthy, Carlos Amorales, Regina Silveira, Marcelo Silveira, os desenhos de mar e tempestades da Sandra Cinto, Gabriel Dawe, Do Ho Suh, Li Hongbo, Anila Quayyun Aga, Baptiste Debombourg, Antony Gormley, gravadores como Marco Buti, Claudio Mubarac, Evandro Carlos Jardim, os buris de Lívio Abramo e vários outros artistas, não apenas contemporâneos; impossível lembrar de todos.

Como você descreve seu trabalho? Falar sobre meios utilizados e assuntos discutidos. Se pintura, óleo ou acrílica?
Iniciei minha produção em artes por meio do desenho, da pintura e da gravura, e desde 2002 me interesso pela extensão da escala do desenho para o espaço arquitetônico e experimento diversos materiais, técnicas e linguagens.
As técnicas tradicionais da arte, como pintura com têmperas ou a óleo, nanquim e gravuras (xilogravura, ponta seca ou maneira negra e fotogravura, técnica tradicional aprimorada no século XIX) são parte da minha prática junto com a apropriação de materiais ou técnicas industriais cotidianos como lixas para metais e madeiras, vinil, gravação e recorte a laser, pastas de acetato translúcido típicas de papelarias, bijuterias e adereços de moda e vestuário, resinas, cartazes lambe-lambe, carimbo, xerox, objetos construídos manualmente etc.
Trabalho com temáticas relacionadas ao elemento natural e ao fantástico (sobrenatural), numa tentativa de reflexão sobre a atuação do humano diante do mundo natural. A natureza aparece na forma de criaturas (principalmente pequenos seres marinhos, répteis e plantas) e fenômenos naturais (como neblinas, tempestades, furacões, mares, nuvens, desertos, vulcões e luar, entre outros) sob uma atmosfera misteriosa, insólita e fantástica trazida de lendas, mitos e contos populares do Brasil e do mundo. Este é um artifício para abordar outros assuntos além do que a situação ficcional apresentada propõe (assim como o fazem os contos de fadas e lendas). O humano aparece nas técnicas utilizadas (muitas vezes caracterizadas por uma artificialidade aparente) e na relação visual estabelecida entre o corpo dos animais e o modus operandi dos fenômenos naturais com os mecanismos (máquinas) criados pela humanidade, em alusão à ideia de inevitabilidade da máquina artificial em copiar os mecanismos da natureza, pois todos os princípios foram criados antes pela natureza. Até porque nada está fora da natureza; nem o humano.

É possível viver de arte no Brasil?
Sim. Não é fácil nem estável, mas é possível. Exige muita autonomia, tem sempre que correr atrás, fazer projetos para editais, residências, oficinas, prêmios etc. Cada vez existem mais editais dos governos, mais salões (privados inclusive), mais galerias de arte, mais programas de residências artísticas, mais possibilidades de formações acadêmicas (existe, por exemplo, o mestrado e o doutorado de artista, que considera o conhecimento e a linguagem visuais tão válidos como a linguagem científica. Muitos não percebem, e até criticam, até dentro do meio artístico, mas esta aceitação na academia é um grande avanço para a nossa área do conhecimento, e no qual, pelo que sei, o Brasil é pioneiro).

Você trabalha com vídeos, como eles são financiados? Há mercado para eles
 Trabalho pouco com vídeo e nas vezes em que o fiz, eu mesma financiei. Mas cada vez mais abrem editais específicos de vídeos. Pelo que eu percebo, editais de artes têm aumentado e se profissionalizado e isso faz parte de ações dos governos (federal e estadual) dos últimos 10 anos. Os artistas tiveram sim, graças a políticas dos governos, uma melhoria substancial na profissionalização de seu trabalho, mas ainda têm muito que melhorar.

A mulher e o homem estão em iguais condições no mercado de arte?
Definitivamente não. Em números absolutos as mulheres estão muito menos contempladas nos editais de arte e nas galerias que representam artistas. Porém, porcentualmente, arrisco dizer que somos no mínimo 50% da classe dos artistas ou mais, como o somos da população do país. Acho que tem sim, um machismo aí. Machismo é como racismo e homofobia; não dá pra dizer que não existem, inclusive nos mais mínimos detalhes e aparecem gritantemente nos resultados práticos. Veja por exemplo, que para responder esta pergunta, verifiquei, em números exatos, o que já sabia por vivenciar: em galerias de São Paulo, Rio, BH, Curitiba e Recife os números, pesquisados entre galerias dirigidas (total -maioria nesta pesquisa- ou parcialmente) por mulheres, são absolutamente terríveis: em uma galeria de 42 artistas representados, 13 são mulheres, em outra, de 38, as mulheres são 16, em outra são apenas 3 mulheres em 15 artistas, em outra ainda a proporção é 7 mulheres de um total de 30 e continua com 5 mulheres em 27, 7 em 28, 11 em 24, 12 em 27, 8 em 27, 13 em 31, 5 em 26, 4 em 15.... Se formos pesquisar entre os artistas selecionados nos editais, a proporção homens/mulheres vai ser igual ou pior. Todos os anos, são incontáveis os editais e prêmios onde não tem artistas mulheres selecionadas ou elas são minoria bem escassa. E para completar o caso, que eu considero de machismo internalizado e involuntário, há artistas mulheres (e não são tão poucas) que, apesar de perceberem e reclamarem destes resultados que descrevi, acreditam que as cotas para mulheres não devem existir em editais.

O que você pensa sobre os salões de arte? Alguma sugestão para aprimorá-los?
Penso que, como estes salões existem nas mais diversas cidades, são excelentes iniciativas para divulgar as artes e tentar diminuir aquele buraco conceitual que existe entre a população em geral e as artes visuais contemporâneas. Um buraco que a escola tradicional não cobre, não ainda, não somente. Porém, o problema é quando o próprio júri não é tão especialista em arte contemporânea quanto deveria ser. Mas outro aspecto importante dos salões é que devem atuar como parte da institucionalização do artista como profissional, como profissão. Portanto, o aprimoramento vital dos salões é que todos passem a pagar por participação do artista (o que seria um cachê de participação na exposição e conversas com o público, atividade que muitos já propõem, nem todos remunerando por isso) e deveriam ajudar nos custos de produção da obra, bancar custos de transporte e de passagens e estadia dos artistas. Mais importante do que ter um prêmio em dinheiro para 2 ou 3 artistas escolhidos, é que todos os selecionados sejam remunerados como profissionais que estão trabalhando, como de fato estão. (Lembremos que todos os demais envolvidos em um salão/edital de arte são remunerados, desde o garçom que na abertura serve bebidas até o montador, o educador e o curador etc. O que justificaria o artista não receber?). O prêmio especial com mais verba deve existir somente se existe uma condição de participação digna para todos os selecionados.
Outro aprimoramento dos salões é que todos deveriam diminuir os custos de participar dos editais, tendo inscrições online ou aceitando portfólios em CDs e eliminando a necessidade de sedex; carta registrada, que fornece um número de rastreio para verificar se foi entregue a encomenda, é suficiente. Para eliminar a necessidade do sedex, basta que  quem escreve os editais organize as datas de seleção considerando o tempo dos correios, simples, não é?!... Falta comprometimento para que as organizações de salões e editais percebam e mudem isso. Afinal, quanto dinheiro por ano os artistas têm de reservar para imprimir portfólios e enviar sedex com AR??...
Além de que ainda existem trabalhos cujas fotografias dificilmente ficam boas impressas, por terem materialidade metálica, brilhante, transparente, cores sutis ou tudo isso junto. Eu por exemplo tenho obras inteiramente em folhas de ouro ou de prata e considero que consegui fotos boas quando as vejo no monitor do computador, em cor luz, mas impressas perdem muito da materialidade da obra, tornando impossível o júri perceber a obra pela foto impressa.

O que é necessário para um artista ser representado por uma galeria?
Olha, para entrar numa galeria não sei. Acho que não existe mais a necessidade de um curador indicar o artista, pelo menos não em todas as galerias, pois os currículos e portfólios mostram se o trabalho do artista está sendo bem aceito pelo circuito, seja em exposições de instituições, editais, prêmios ou salões de artes, além de mostrar o fôlego que o artista tem para produzir. Porque estar representado em uma galeria exige que o artista tenha frequentemente objetos de arte para venda, de preferência atendendo prazos e metas de feiras e exposições anuais que as galerias participam e organizam. As galerias são muito importantes, pois delegam a tarefa de vender para profissionais de venda, deixando o artista com mais tempo para sua atividade criativa de produzir, e vender ajuda a viabilizar esta produção. Mas o circuito está estranhamente saturado, não tem galerias para todos os artistas, mesmo que muitas das galerias não tenham custo em ter artistas, afinal, nem todas pagam a produção do que não vende. Acho que existe um receio de muitas galerias em arriscar. E acho também que se exigem uma exclusividade de representação, deveriam garantir um compromisso de venda, pois as galerias ficam com possibilidades de lucro através de diversos artistas, mas os artistas ficam reféns de ter vendas através de uma única galeria, que pode ou não estar vendendo bem. A saída, enquanto isso não muda, vira buscar galerias em diversos estados e até outros países e obter verbas de editais. Ou seja, exige muito empreendedorismo dos artistas. Vendo isso, só posso achar que não existe melhor nome de prêmio para artistas do que o 'PIPA - Prêmio Investidor Profissional de Arte'... É o que os artistas que aceitam participar deste circuito se tornam.

Rio e São Paulo, na minha opinião, são muito afastados, há pouco intercâmbio entre os artistas, qual a sua opinião sobre esse fato?
Acho que tens razão. O bairrismo e o resquício de rixa histórica entre estes estados são bastante responsáveis por esta separação. Mas os artistas, junto com as instituições e galerias, têm procurado transpor estas barreiras e isso é muito bom, promove trocas de saberes e experiências. Vejo cada vez mais tem artistas do Rio vindo viver um tempo em SP e experimentar galerias e universidades daqui e vice-versa.

Quais são seus planos para o futuro? Algo no Rio? 
Os planos são continuar na luta para me manter na profissão, que é, sim, difícil e instável para a maioria dos artistas. Continuar meus trabalhos, meus estudos e a busca por novos espaços e possibilidades para o circuito de arte, pois faz tempo que já não se pode mais continuar apenas disputando os mesmos espaços. A força que o circuito alternativo tem ganhado faz parte dessa vontade dos artistas de não se limitarem aos editais que os governos e instituições oferecem ou às feiras e exposições que as galerias realizam, que além de não terem viabilidade de abarcar todos os artistas, são direcionados para públicos já inseridos neste circuito. A maior veiculação da arte é tarefa que os artistas estão tomando para si, até como estratégias de atuação para sobrevivência da carreira e por entenderem as capacidades das artes como transformadoras da sociedade.
Tenho intenção de conhecer e participar mais do circuito do Rio, sim, e para breve, tenho alguns projetos, mas ainda sem nada concreto.
  

São Paulo, 09 de novembro de 2014

____________________

Entrevista para a Revista Graciliano - Alagoas

http://graciliano.tnh1.com.br/2014/05/14/olharparaver/
Olhar para ver
Entrevista para Revista Graciliano, por Francisco Ribeiro

A artista visual Flora Assumpção está à procura de olhares interessados em ver o que está além. “Ver dedicado a ver”, disse a mineira, que expõe suas obras pela primeira vez em Maceió, até o dia 06 de junho, na Pinacoteca Universitária, galeria de arte mantida pela Universidade Federal de Alagoas. “A partir do momento que nos interessamos em ver tudo o que está visível, descobrimos também a história por trás daquele objeto”, pontua.
Miragens é o título da mostra que reúne 37 peças, criadas em diferentes linguagens e suportes. O material exposto contempla uma videoinstalação, peças em resina e metal, dois livros-objetos em fotografias, três séries de fotogravuras e desenhos gravados a laser sobre espelhos. Assim como uma alquimista das artes plásticas, através do seu olhar, Flora converte em altares, jóias, fósseis e painéis o que antes era apenas correntes, pratas, espelhos e fotografias. 
A artista empresta a sua visão de mundo aos que querem vê o mundo como ela o interpreta. “Acredito que o conhecimento visual é uma forma de linguagem não verbalizada”, explica. Flora também busca contextualizar seus trabalhos resgatando elementos mitológicos de culturas antepassadas. É nesse espaço que percebemos as referências ao universo onírico de Jorge Luís Borges e ao realismo fantástico de Gabriel García Márquez, como pode ser visto na série Animais Simbióticos.
Inclinada, logo no início da sua carreira, para o desenho e pintura, Flora começou então a investigar outras técnicas que lhe possibilitasse traduzir seus conceitos estéticos. Foi assim que passou a extrair a poesia contida nas formas, nas cores e nas imagens de diferentes tipos de materiais. Suas criações cresceram em experimentação e em dimensão, como, por exemplo, na videoinstalação Vertigem do Mar. Nela, o espectador é convidado a mergulhar na própria obra.
Flora já expôs no Paço das Artes, no CCSP, no MAC-USP, no Instituto Tomie Ohtake, na Galeria Emma Thomas e na Galeria Gravura Brasileira. Em 2007, recebeu o Prêmio Destaque do Júri no 16° Encontro de Artes Plásticas de Atibaia e em 2012 participou do 10° Salão Elke Hering, Blumenau-SC, no qual foi contemplada com o 1° Prêmio. No ano passado, recebeu o Prêmio ArteRef de Arte Contemporânea e foi Selecionada pelo Edital SESI de Artes Visuais.
Em entrevista à Graciliano, a artista que busca despertar a imaginação dos visitantes – “uma capacidade humana tão abandonada na atualidade ocidental”, como ressalta o texto curatorial –, fala de Miragens e das suas descobertas.
GRACILIANO – Você iniciou sua produção em artes por meio do desenho e da pintura. Em seguida, passou a flertar também com outros tipos de materiais, técnicas e linguagens. Como se deu esse processo?
FLORA ASSUMPÇÃO - Deu-se bem cedo. Eu estudei pintura durante um ano, por volta dos 16 anos, antes de entrar na faculdade. E ao ingressar na universidade, eu parei de pintar, apesar de gostar muito de cor, de fazer tintas; entendo bastante sobre a teoria de cor. A minha relação com o desenho e a pintura foi muito importante. Eu só fui para gravura porque era uma coisa nova, talvez. A princípio, não conhecia nada sobre essa técnica. Naquela época, pensava que detestava escultura, aí eu escolhi gravura para o meu bacharelado.

GRACILIANO –  O elemento natural e o fantástico (sobrenatural) são temáticas bastantes presentes em suas obras. Quais reflexões você busca lançar através delas?
FLORA ASSUMPÇÃO - A reflexão é que o homem precisa – e esse também é o grande desafio do século 21 – aprender a imitar a natureza. E a prova disso é o lixo. A natureza não produz resíduo. As pessoas acham que colocando a sacolinha de lixo para fora de casa, elas já se livraram do problema. Nós comemos peixes que estão contaminados com plásticos espalhados pelos oceanos. Nós precisamos imitar o mecanismo da natureza nisso. Na natureza tudo o que uma espécie descarta, a outra usa. E nós somos o câncer no meio disso, somos o descompasso. A água tem memória, segundo muitos estudiosos. Você pode ter uma água destilada que sempre foi pura e uma destilada do esgoto. Ambas quimicamente são idênticas. Quando você analisa as duas amostras num laboratório, elas são diferentes e ninguém sabe explicar o por que. E é isso que eles chamam de memória da água.

GRACILIANO – Miragens tem a intenção de provocar a imaginação e a ficção dos visitantes, capacidades tão abandonadas na atualidade ocidental. De que forma você tenta resgatar essa sensibilidade?
FLORA ASSUMPÇÃO - Quando o trabalho exige que você tenha calma, olhe com cuidado, queira ver os reflexos; ou seja, ter tempo para perceber as coisas que na correria do cotidiano não nos damos conta. Ver dedicado a ver. A partir do momento que nos interessamos em ver tudo o que está visível, descobrimos também a história por trás daquele objeto. Não faço um trabalho para dizer que o homem não precisa criar lixo, ou para contar história de Borges, ou da arquitetura pré-colombiana. Percebo, anos depois, a relação que há entre eles. Acredito que o conhecimento visual é uma forma de linguagem não verbalizada. E é isso o que muitos artistas contemporâneos esquecem. Somos acusados e torturados por uma pergunta que odeio: O que seu trabalho tem haver com a contemporaneidade? Então, os artistas ficam procurando os problemas do mundo para cuidar através do trabalho deles e esquecem que existe uma beleza além disso.

GRACILIANO –  Como começou sua relação com as artes visuais?
FLORA ASSUMPÇÃO - Meu pai gosta e desenha muito bem. Eu sempre desenhei muito desde os 3 anos. Tem aquele desenho que vem desde o ombro da criança, passa para o cotovelo, para o pulso e fica uma coisa muito mais controlada. Minha mãe sempre deu lápis e papel em casa e o interesse vem daí. Na época da escola eu não imaginava que iria fazer nada com artes. Pensei em estudar História, para ser historiadora. Após o ensino médio, com cursinhos pré-vestibulares que aplicavam provas todas as semanas, eu fiquei cansada e pensei: Vou descansar, irei fazer Artes Plásticas e, depois, História (risos). E logo no primeiro ano da faculdade, percebi que já não queria História. Sem querer foi à escolha certa.

GRACILIANO –  Alguns trabalhos podem ser vistos de cima, outros convidam o espectador a aproximar-se o máximo que puder para enxergar os detalhes, enquanto a instalação Vertigem do Mar nos insere na própria obra. Essa ideia de distância e proximidade do olhar do visitante foi proposital? O que há nesse gesto?
FLORA ASSUMPÇÃO - É proposital. O que tem nesse gesto é uma pergunta mais difícil de responder, mas eu acho que possui uma relação com a ideia que eu quero passar na obra. Porque, por exemplo, se for uma joia, colocada numa espécie de altar, deve ser pequena. Se for para mostrar a nossa pequenez humana diante da natureza ou da arquitetura a obra deve ser maior. Tem essa necessidade. Então, tem um pouco da intenção mesmo, com o que eu quero dizer.

GRACILIANO – O título da exposição é uma referência aos aspectos de refrações, transparência e brilho; e também uma metáfora inevitável para as ilusões humanas. Gostaria que você falasse mais sobre isso.
FLORA ASSUMPÇÃO - Tem algo meio autobiográfico. Depois dos meus dois primeiros trabalhos feitos com a escala da arquitetura, eu parti para desenhar os corrimões de ônibus. Delimitava todo o espaço de ônibus só com os corrimões, que são estruturas tubulares. E dessas estruturas, que aliavam o movimento orgânico ao de máquina, eu cheguei às serpentes, às araucárias etc. A dificuldade de o orgânico ser aceito no tubo do corredor de ônibus é que ele é um tubo de uma máquina. Então, agora eu percebo, já estava discutindo tais questões presentes nesta exposição lá em 2004. Acho que a arte verdadeira acontece desse jeito. A miragem reside nisso: no conhecimento que está lá, sem você saber que ele já está lá. São as nossas vivências que trazemos para o trabalho. Percebo também que a relação entre o homem e a natureza – discutida na mostra – também está no homem com o outro. As lutas de poder, desde as grandes até as pequenas, muitas vezes, não declaradas. O poder sempre gera medo ou desconfiança. Alguém sempre está sendo subjugado pelo poder. Então, em Miragens, eu falo um pouco sobre essas ilusões. São ilusões porque são fugazes. Assim como tudo na vida é.

GRACILIANO – O texto curatorial diz que as obras expostas dialogam com a literatura fantástica de autores como Jorge Luís Borges, Gabriel Garcia Márquez e Júlio Cortázar. De que forma as artes em geral servem como referência para você?
FLORA ASSUMPÇÃO - Eu gosto muito de música. Não entendo nada de teoria musical. Tenho uma irmã cantora lírica, meu pai canta em coral também. A música faz parte da minha vida. Eu produzo ouvindo música. Tenho uma série dessas correntes que foi batizada de Milton e Mercedes, em referência a canção “Sueño con Serpientes”, do Milton Nascimento com a Mercedes Sosa. Nela, Milton recorda um sonho com serpentes largas e transparentes, e ao matá-las aparecem outras maiores. Isso é a vida também. Você vence uma batalha, tem outra atrás. Eu gosto muito de artes plásticas, tem vários artistas, tanto da atualidade, como os antigos, que eu gosto bastante. Se eu começar a citá-los aqui, corro o risco de ser injusta e me esquecer de alguns nomes. Gosto muito de literatura, esses trabalhos da instalação e das gravuras vêm desse conto, que se chama “O Mar do tempo perdido”, do García Márquez. Queria ler mais do que o meu tempo permite hoje.

Conheça mais o trabalho de Flora Assumpção através do link: http://goo.gl/ceawMr
SERVIÇO
O quê: Exposição MIRAGENS, de Flora Assumpção
Onde: Pinacoteca Universitária, Praça Sinimbú, s/n, Centro
Visitação: até 06 de junho; seg. e qui., das 08h às 20h; ter., qua. e sex., das 08h às 18h.
Aberto ao público.
Mais informações: (82) 3214-1545.

____________________

2013

Prêmio ARTE Ref Entrevista com a artista da semana
http://arteref.com/artista-da-semana/flora-assumpcao/
Flora Assumpção: a vencedora do Prêmio Arte|Ref
A artista Flora Assumpção foi selecionada como vencedora da primeira edição do prêmio Arte|Ref de Arte Contemporânea. Na seguinte entrevista com a artista ela conta um pouco de sua trajetória, produção e sua relação com a arte. Artista graduada em artes visuais no Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, com especialização em gravura. Iniciou sua produção em artes por meio do desenho e da pintura. Desde 2002 se interessa pela extensão da escala do desenho para o espaço arquitetônico e experimenta diversos materiais, técnicas e linguagens. Mantém reflexão e prática direcionadas à pesquisa em desenho e em ocupação de superfícies bidimensionais e objetos e, paralelamente, desenvolve projetos de instalações para arquiteturas específicas e de instalações para espaços expositivos, explorando a relação do desenho com escalas arquitetônicas para a criação de ambientes ficcionais com a intenção de provocar experiências imersivas de caráter poético.
Veja o trabalho premiado: Piscina I, 2012
Pequena biografia:
Sou de família paulista, mas sou mineira, nasci e cresci em Minas Gerais, numa cidade sem nenhuma atividade ou circuito de arte contemporânea e então o que conheci de artes antes da faculdade foi com meus pais. Estudei artes plásticas na USP e desde a graduação tenho mostrado meus trabalhos e intervenções de arte em diversas exposições em salões e galerias.
Fale um pouco sobre o seu trabalho (técnicas usadas, material):
Comecei minha prática em artes visuais através do desenho e da pintura, seguindo para gravura (xilo e metal, principalmente), depois experimentei instalações e intervenções e, por fim, videos e objetos tridimensionais. Considero que a escolha dos materiais e técnicas depende da ideia da obra, mas que técnica é conhecimento intelectual tanto quanto o conceito da obra e que estes são interligados, invariavelmente.
Quais as maiores influências para a criação de suas obras? (movimentos, artistas, música, viagens, assuntos, temas, poética)
Várias da literatura, como Jorge Luis Borges, Dostoievski, Guimarães Rosa, um conto do Eça de Queiroz chamado ‘O Mandarim’, Orham Pamuk acho genial com o ‘Meu Nome é Vermelho’ e me inspira muito, J.M. Coetzee, etc.
Adoro os filmes do Hayao Miyazaki, tanto pela qualidade gráfica como pela poética do enredo. Gosto de desenho e ilustração, como Escher, Moebius, e outros.
Música é essencial, muito presente na minha vida. Gosto de vários estilos e sempre prefiro as mais densas, pesadas e tristes (mas eu não me entristeço ouvindo-as)… Gosto de Lhasa de Sela, Lila Downs, Madredeus, Bethânia, Elis e Ney. Gosto de música erudita e clássica, mas sem ser grande conhecedora, adoro os Concertos de Brandenburgo de Bach. Mas também adoro um bom rock, como Led Zeppelin e vários antigos e alguns mais recentes. Gosto de alguns pops, algum world music, samba, músicas regionais etc…
Em música e artes visuais, penso muito numa frase do Iberê Camargo: “Nunca toquei a vida com a ponta dos dedos”. Identifico-me profundamente com isto. Acho que não compreendo músicas ou artes visuais levianas, descompromissadas.
Viajar é condição extremamente conectada à poética de minha obra, necessito ver naturezas diferentes, conforme suas localizações no globo terrestre. Ainda preciso dedicar tempo para conhecer muito mais lugares do que os que conheci.
Quando e como começou o seu interesse pela arte?
Quando criança já tinha giz de cera na mão desde os 3 anos, meus pais dão a muita abertura pra isso. Meu pai desenhava muito bem, estudei em escola de pedagogia Waldorf, então fiz todo tipo de experiências manuais: desenho, aquarela, modelagem etc. Acho que nunca parei de desenhar na infância e na adolescência quando tive de escolher uma profissão (época do vestibular), optei por arte, mesmo que só alguns anos depois eu tenha entendido um pouco melhor o que significa ser artista hoje.
Quais artistas na sua opinião estão se destacando no cenário nacional e/ou internacional atualmente?
Bom, os artistas que se destacam sãos os que estão aparecendo no circuito e no mercado, mas não necessariamente são os que de fato têm trabalhos bons, relevantes. Existe muito modismo neste meio e muitas obras são copiadas levianamente. O interesse que motiva a criação de uma obra de arte tem de ser genuíno. Tudo que é copiado perde força conceitual e poética, perde beleza e causa a sensação de descuido no fazer, que é a sensação nítida de que o próprio artista não sabe tão bem o que está fazendo. Isso é muito perigoso e resulta em auto-sabotagem: torna a arte feita hoje, que é a contemporânea, de muito mais difícil compreensão para o público leigo e até para os profissionais do meio artístico. Vira uma ‘bola de neve’ e a arte fica mais e mais elitista.
Gosto de alguns dentre nomes mais consolidados e os considero relevantes, tais como Anish Kapoor, Regina Silveira, Liliana Porter, Takashi Kuribayashi, Leandro Erlich, Marco Buti, Sandra Cinto, Ana Tavares, Carlos Amorales, Kate MccGwire, Richard Serra, entre outros. Mas tem muita gente mais jovem no cenário artístico fazendo trabalhos muito bons.
Como você definiria a arte contemporânea?
Acho que a definição de arte contemporânea não pode ser muito diversa da definição de arte. A diferença apenas está na sua existência mais recente. Claro que isso implica em novas tecnologias e contextos mundiais, mas, para mim, arte ainda continua sendo uma modalidade específica do fazer humano, como diz o Argan. Se for mais diferente do que isso, é algo diverso de arte. Este é mais um dos perigos nebulosos em que as pessoas envolvidas com artes têm mergulhado. Não podemos nos esquecer de que muitas supostas novidades de categorias artísticas e conceitos da dita arte contemporânea não passam de desconhecimento nosso do que eram as obras e modalidades de arte do passado e de como as pessoas se relacionavam com a arte do passado. Por exemplo, ‘arte e vida’, ‘arte e política’, ‘arte e ciência’ etc são questões supostamente atribuídas às artes contemporâneas, mas que existem há séculos.  A maneira contemporânea de vivenciar arte, política e ciência é que é diferente, mas a relação sempre existiu, a arte do passado nada tinha de alienada das sociedades em que foram criadas.
Conheça todos os trabalhos da artista acessando o site.  

____________________


2011
DESENHADORA 
por Lucas Oliveira                                                                                            
Ninguém desenha pelo desenho. (Vilanova Artigas)
Em sua origem, o termo desenho contenta o que se imprime de uma ideia ou gesto sobre uma superfície. O que resulta plasticamente deste gesto - o que se dá a ver - é a conformação da ideia como uma experiência que se insinua aos olhos. O desenho é a lacuna entre o que o olhar entende, o que o gesto conquista e um esforço criativo. Como prática, está relacionado a uma noção de desígnio, de intenção e propósito. O corpo, munido de uma ferramenta, se esforça até alcançar a força e a dimensão desejadas para riscar ou arriscar, com doses de sensibilidade e cálculo. O disegnatore reorganiza o próprio corpo, mas submete também a percepção de quem trava contato com o desenho. Aí, para se fazer notado, o desenho convida à apreciação o olhar, o corpo e os sentidos. Ampliam-se as possibilidades do termo, que poderá ser entendido como a proposição de uma experiência imersiva em si, mas também como o criador de um espaço de invenção, descoberta e surpresa conjunta.

O conjunto de trabalhos que compõe a exposição Encapelado propõe a descoberta dos desígnios da artista Flora Assumpção. Munida de uma investigação sobre qualidades serpentescas, máquinas fabulosas e fenômenos naturais, a artista configura uma atmosfera ficcional que mescla a exploração de desenhos em escala arquitetônica, de imagens ampliadas, famintas, ou experiências oníricas e intimistas adaptadas para a realidade do espaço expositivo. Não se aflija, não se assuste. Antes que se perceba, corpo e espaço colidirão - não sem algum limite de conforto. Farão de si mecanismos de descoberta mútua, numa tensão entre atração, vulnerabilidade e repulsa, onde o primeiro se submete a uma experiência física e subjetiva de imersão frente ao fantástico. O desenho se revelará objeto de um cativeiro imaginário, sujeito suspeitoso, à espreita. É um jogo para dois.

________________________


GOETHE INSTITUT STUDIO VISITS
http://blog.goethe.de/studiovisits/archives/20-Of-snakes,-mythology-and-Aby-Warburg-studio-visit-with-Flora-Assumpco.html#extended 
OF SNAKES, MYTHOLOGY AND ABY WARBURG: STUDIO VISITS WITH FLORA ASSUMPÇÃO
By STEFANIE HESSLER
It is a hot São Paulo spring day when I visit Flora Assumpção in her studio. I had seen her work in August 2010 at Galeria Emma Thomas and Baró in São Paulo, where I went for an event titled “The Creators Project“. In the midst of the flurry of open bar, concerts and new media projects, during a calm moment outside in the patio, I saw her giant silver snake on the wall surrounding the outside of the gallery space. From inside the gallery, visitors could already see it through the large glass facade opening up to the patio of the industrial building. During my research, I found out that Flora was the artist behind this piece and I wanted to meet her to know more about her work. So here I am at her studio, which smells of the delicious cake Flora is baking.

She explains how she came to working with the snakes as one of her major visual forms and distinctive mark and how this reptile‘s symbolic and mythological attributions are connected with that decision. Flora used to draw the hand rails of São Paulo busses and how they wind like snakes through the public transport systems of this city and any other city in the world. The serpent is perceived as the sinful creature who offered Eve the forbidden fruit and led to mankind‘s expulsion from paradise, but also as mythological being. It was held sacred in the ancient world and believed to be immortal due to its moulting and the capacity to regrow its skin, making it the sign of pharmacies and healing today, and perceived as a clever, ambiguous, deceitful creature. Flora explains that her use of this imagery is as rich and pointing to several subjects and topics that are as multifaceted as the meanings and significations this reptile stands for.

She uses this metaphor to conceive intriguing photographs that leave the viewer in the uncertain of whether they have been digitally altered and how the pictures come into being. I am puzzled and amazed when Flora pulls out some old necklaces she has inherited from her grandmother or bought on flea markets and explains that these are the originals for the photographs she takes. I marvel at these common and quite plain objects, that obviously open up for a much greater visual potential than it may seem. Between a shiny consumer object and containing a supernatural and phantasmatic twist, they are intriguing visual expressions between the abstract and the very concrete.

In her outdoor pieces, the snakes are installed on walls without any backdrop other than the subsurface they are placed on. This deprives them of their pictorial character, becoming almost three dimensional invaders of the real world, claiming and demanding the visual attention of anyone near them. In some cases they even resemble sculptures rather than photographs, leaving the viewer in surprise when coming closer and realising that it was due to the glass wall in front of them that the photographs appeared to be sculptural entities. In a beautiful contrast to them stand Flora‘s simple line charcoal drawings, and her artist books that fluctuate between art objects and sketch-book, and which string together series of colour-manipulated photographs.

The mythos of the snake has manifold references in art history and mythology: Hercules, the Greek hero who stands for strength and courage, is said to have strangled the snakes that his mother Hera sent to the children‘s room. German art historian and cultural theorist Aby Warburg (1866-1929) was fascinated by the Native American Hopi who made images and pictures of snakes, allowing them to create a mental distance to the creatures and thereby overcome their deadly fears, so they could even take the poisonous reptiles into their mouth. Warburg was fascinated with the power of symbols and the field of tension between the human fear of demons and how they - by making images and symbols of them - managed to get over them. It is an interesting turn to think of how Flora blows up the photographs of something as trivial as a silver chain necklace to the size of a menacing snake, changing its materiality, meaning and thereby also its potency. 


____________________

http://www.colheradacultural.com.br/content/20110214084635.000.2-N.php
ENTREVISTA PARA SITE ‘COLHERADA CULTURAL’
10/fev/2011

1 - Como é para você expor uma individual pela primeira vez na cidade de São Paulo? Você acha que tem alguma diferença para as outras cidades do país?
Sim, pois é sem dúvida alguma, a cidade onde o circuito de arte é mais intenso, diversificado e atualizado. É, certamente, a cidade onde o trabalho tem mais repercussão.

2 - Porque a escolha da palavra Encapelado para intitular a exposição?
Encapelado é o título que dei para uma das obras expostas e se tornou também o título da exposição porque unifica as temáticas abordadas (elementos naturais ar e água às serpentes sobrenaturais). A palavra Encapelado tem 3 referências:
- de um mar em tempestade, revolto dize-se ‘mar encapelado’ ou ‘mar cavado’.
- capelo é a palavra que alude ao formato da cabeça da naja, também conhecida como cobra-de-capelo. Por ‘naja encapelada’, entende-se uma naja em situação de bote, pronta para atacar.
- sonoramente, em português, encapelado alude à palavra capela e, conseqüentemente, aos seus significados de templo, local religioso, de contemplação de algo maior do que nós mesmos.
Mas quero lembrar que minha exposição tem um segundo título: (ou Contenções) -  que se refere a elementos contidos/retidos/ congelados/ parados em seus movimentos e daí surge uma pergunta: o que nos contém, detém, pára, retém?... Todos os trabalhos  têm a ficção de algo que não podemos controlar, de uma entidade natural misteriosa cuja vontade desconhecemos, o que, em geral, nos provoca receio. Entendo como uma metáfora ou alusão a diversas situações às quais um indivíduo inevitavelmente vivencia. 

3 - Você não se prende a apenas uma forma de arte, você “brinca” com vídeos, livros, instalações e obras arquitetônicas. Você acha que isso traz mais diversidade a sua arte? Por quê?
Acho que a diversidade de que você fala já existe antes das diferenças entre as técnicas utilizadas. As técnicas são escolhidas em função da idéia, do pensamento visual que as obras expressam/representam. As idéias são amplas e sutis; e a variedade dos materiais, assim como a escala do trabalho, alude (evidencia e/ou representa) a estas sutilezas e peculiaridades.

4 - Por que a escolha de serpentes para ilustrar suas obras?
A serpente foi uma conseqüência, um caminho natural, um percurso visual que se tornou, inevitavelmente e a primeira vista, para quem não conhece a trajetória dos meus trabalhos, menos importante diante da força que tem a serpente enquanto símbolo. Por quase 5 anos eu realizei desenhos cuja espacialidade era criada pela estrutura dos corrimões dos ônibus circulares de São Paulo. Eram desenhos, ao mesmo tempo, duros e orgânicos. Marco Buti, Evandro Carlos Jardim e Cláudio Mubarac, meus professores, colocaram esta organicidade em questão e me presentearam, em nossas conversas de orientação, com desafios de desenho. Então eu passei a desenhar árvores sinuosas, araucárias, ondas de mar, serpentes e nuvens, enquanto também experimentava desenhar em escalas arquitetônicas em diversos projetos de intervenção. Em minha banca de conclusão da graduação na USP, apresentei um livro de gravuras reunindo imagens destes temas e o qual intitulei de “dos corrimões das serpentes das nuvens do mar”, Mubarac fez uma longa consideração sobre a Serpente Emplumada, divindade serpente dos maias e astecas, muito complexa e rica em significados, que é serpente e pássaro, a água e o ar, deus bélico e da fertilidade, tudo em uma só divindade. Neste momento meu interesse por lendas/mitologias/folclores envolvendo serpentes já estava bastante adiantado e intensifiquei minha pesquisa, inclusive viajando ao México para estudar in loco esta entidade misteriosa. A serpente é um ser muito rico em significados para diversas culturas do mundo. Também por isso ela se tornou um símbolo facilmente detectável em minhas obras e fica mais difícil perceber que meu trabalho fala de muitas outras temáticas através da serpente.

5 - O sobrenatural e a atmosfera fantástica são recorrentes em suas obras. Você sempre se interessou sobre esses assuntos? E quando eles foram realmente incorporados em seus trabalhos?
Estes assuntos estiveram presentes desde cedo em minha vida, por influência de meus pais, que sempre me contaram estórias misteriosas antes de dormir. Minha mãe é pedagoga e dá muita importância à tradição oral e aos contos-de-fada para a formação de uma criança. E meu pai me apresentou a boa literatura, as artes, o cinema e a música, sempre me incentivando com redações e poemas, desenhos e apresentações de teatro na escola. Considero que estas experiências me deixaram bastante conectada com isto que chamo de ‘lado mais poético da vida’ e que se refere mais ao conhecimento cognitivo. A preferência pelo sobrenatural e o fantástico foi algo que desenvolvi durante minha descoberta do desenho, conforme meus trabalhos foram tomando corpo. Acho que estes elementos estão presentes há mais tempo, mas foram de fato identificados, reconhecidos e assumidos de uma forma coesa somente há pouco mais de um ano.

6 - Você é natural de Minas Gerais, quais são os artistas de lá que você mais admira?
Confesso que conheço pouco os artistas mineiros contemporâneos, mas admiro demais a Ana Maria Tavares, a artista de quem sou assistente e que foi minha professora na faculdade (ECA-USP), apesar de que durante minha graduação tive pouco contato tanto com  a artista como com sua produção artística. Quando me formei e iniciei meu trabalho com a Ana é que pude conhecer toda a sua produção e, inclusive, perceber o quanto minha obra dialoga com a dela e também o quanto difere.

____________________

FABIANO CALIXTO SOBRE  A OBRA DE FLORA ASSUMPÇÃO
2011
  
Verde azul amarelo rosa e branco

¨ ária: vivo, volve: alvo em alta alvura: entra, penetra, espelha mil ilhas nas pupilas: orbita como quem espalha o olho pelo espelho: adentra: pés, mãos, unhas, articulações: caminha: olhos, lábios: presságio epifania: duplo doublet: medo à capela. Solta, desata, amarra & agarra. Terra nos olhos: planeta água – dinâmica. A serpente que cria, a serpente que cala. Verde azul amarelo rosa e branco. Movimenta-se ­– infinito círculo: nos seios dos séculos os ciclos: ciclos: ciclos: Bemsemsomsolsalmal: Céucemcomcordordarmar: urgência-regência – ao movimento. Mo-ver-se: onde: areia concretiça: a arquitetura faz frente e afronta ao front da mente: que responde ao inventar um épico Blake a encher o estômago da neblina faminta que povoa a floresta: uma outra: uns: outros olhos abertos: anarquitetura: textura: poéticas. Ainda: olho do furacão. Ou: um ensaio sobre a modulação, ossatura, simetria, tessitura: casamentos perfeitos: rimas que embebedam as línguas: que se enxugam-excitam umas às outras: como serpentes aninhadas: alojadas no jogo sexo-semântico: céu & hell. A língua: a língua: livro de som & saliva: cedo ou tarde: (de Vênus ou Marte): das profundezas da alma da carne: à capela: a poesia (vinho da vida) desabotoará o vestido do tempo: deixando escapar a libido eterna: fazendo a chuva cair na terra: extrai corais: extrai pérolas: & com a ira das íris d’Osíris: arco-íris. Moenda de escamas geométrica: sob um céu opala que (a todos os olhos): mandala. Ou: diagramas de cacos de vidro: à saída revolta: encapelado. A serpente sedenta sorve o céu: o céu cede, sedento, à serpente: sem cessar, a serpente sorve o céu que a serve: o céu que serve cede à sede da serpente que o sorve: a serpente sedenta sorve o céu. O bote de uma ária no último músculo do crepúsculo: serpentário: serpentária:

  
Fabiano Calixto


____________________

FRANCESCA CRICELLI a respeito da obra de FLORA ASSUMPÇÃO

Piscina, 2011)

The dashing 
emptiness
blues out
the infinite
crossing lines.

Two souls
stand parallel
on the verge
of wholeness. 

(Covil das Serpentes Reencarnadas, 2011)

Kundalini
Certeira saliva sussurra silábica ressalta mordaz minha voz amordaça.
Meus dentes marfins.

(Colisão I e II, 2011)

falsa no tempo
a fala falha

[sentimento descontínuo]

a ferida afunda
fenda na alma

[sentimento descontínuo]

a força do falso
fura a carne
farta e renhida.
  

 [fortress]
   
A
            imobilidade da carne
                        A
               silencia                         palavra
                       se
                pensamentos - furacões
             pesam centelhas
                a fagulha falha
          


(Neblina: o amanhecer e a noite, 2008-2010)

Dorato riflette il sole
i fili sulle finestre
illuminano l’assenza. 

 ---- (tradução) ----
Dourado reflete o sol
os fios nas frestas
iluminam a ausência
 

____________________


2010
DIÁLOGO COM MARCO BUTI
FLORA ASSUMPÇÃO
Novembro de 2009/ Abril de 2010

“Só é bom professor de arte quem é bom artista, porque além das linguagens da arte ele ensina [...] a dedicação, a capacidade de concentração, os valores éticos. Até seu gesto ensina...”
[Regina Silveira. Fragmento de depoimento da artista citado em ‘Regina Silveira – O Olho e o Lugar’.]

Marco Buti, artista e, desde 1996, professor da Universidade de São Paulo (USP). Durante 5 anos atuou como chefe do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, além de aulas ministradas e de alunos orientados na graduação e na pós-graduação.
Em 2008 apresentou sua tese de livre-docência “8.03. a Arte na universidade, a Universidade na Arte” no mesmo departamento, na qual analisa pontualmente diversas situações das artes inseridas no ambiente acadêmico e científico das universidades.
Na posição de artista graduada por esta escola, orientada por Marco Buti e reconhecendo-me como personagem participante de muitas destas situações que compõem a formação em artes visuais na universidade, inicio um breve diálogo com (insisto, ainda) meu professor orientador.
  
1) Logo no início de sua tese você detecta muito precisamente uma das raízes da problemática da arte inserida no contexto da universidade; você mostra que o problema é anterior à universidade, quando constata, através do resultado das provas de aptidão para o curso de artes visuais (divididas em 2 partes: uma teórica sobre história e crítica de arte e outra de desenho) que o conhecimento teórico sobre arte dos candidatos é limitado aos grandes ícones do modernismo brasileiro (Tarsila do Amaral), do cubismo (Picasso) e do Impressionismo (Monet) e que o pensamento visual dos mesmos é determinado pelo universo visual de videogames, quadrinhos, ilustrações de baixo nível e publicidade e logotipos. Afinal, se a escola de ensino fundamental e médio, principalmente a pública, desse alguma referência do que sejam as artes (e não apenas as visuais, mas também a música, a dança ou o teatro), os candidatos saberiam um pouco mais sobre as possibilidades da carreira que estão escolhendo. É corriqueira a justificativa da escolha do curso de artes visuais pelo gosto por animações, quadrinhos ou ilustrações e outros desenhos figurativos. Não que estes não possam ser motivos legítimos para a escolha do curso, mas estes evidenciam o apreço pela representação enquanto verossimilhança, pela dificuldade e qualidade técnicas superadas. E , acredito, é na valorização desta idéia de representação que consiste boa parte do equívoco do leigo sobre o que seja arte (contemporânea ou não) e suas necessidades enquanto curso na universidade e enquanto carreira... E este leigo, conforme você diz, é também o cientista, o professor titular que vai definir a verba e a infra-estrutura que um curso de artes pode ter... E ainda este leigo é aquele que vai analisar os resultados dos departamentos de arte nas universidades.  É um efeito bola de neve.  Como mudar isso? Até que esta mudança se introduza nas escolas, a universidade vai precisar continuar com as medidas paliativas caso a caso...

Marco Buti - A única possibilidade que vejo para mudar isso é a introdução de fato do ensino da arte no ensino básico e médio, ou seja, com professores competentes (muito poucos até agora), carga horária e espaços adequados. Mas me pergunto se isso pode mudar, ou até que ponto. Não esqueçamos o papel de cada aluno em tudo isso. Creio que a escola deva oferecer uma informação mais completa sobre os ramos do conhecimento, mas cada estudante vai progressivamente fazendo suas escolhas, e muito do que se aprendeu provisoriamente é deixado de lado. Nós fizemos uma série de opções pela arte, e somos tão leigos em ciências, por exemplo, como a maioria dos cientistas em arte. Admitamos que a arte tenda a ser majoritariamente concebida como um entretenimento - a indústria cultural sabe disso muito bem. Não é nada comum se entender que pode ser um meio de conhecimento do mundo. Pode ser uma grande abertura, mas talvez não para todos. Creio que cada um deve ter a capacidade de escolher, e para isso, a arte deveria ser bem apresentada mais cedo, a todos, antes da opção universitária. Devemos respeitar a falta de interesse por algo que nos apaixona.
                Mas a questão é muito complexa, e tentarei não simplificar. Por outro lado, é quase impossível, hoje, não ter contato algum com a arte. Através justamente de “videogames, quadrinhos, ilustrações de baixo nível e publicidade e logotipos”. Ou através de dvd’s, cd’s, mp3, etc. Há pessoas que parecem passar o dia ouvindo música em fones de ouvido (mas que música?). Existe mesmo uma prática ingênua de artes visuais constante: retratos e auto-retratos com celulares ou máquinas digitais, filmagens. Não quero tomar posições a priori nem pretender falar em nome dos outros. Em todo esse universo visual podemos encontrar obras de arte legítimas, embora a imensa maioria seja mais do que discutível, mesmo mantendo alguma ligação com o que entendemos por arte. Suponho que o senso crítico dos espectadores tende a ser baixo, e pouco se percebe a existência de uma atitude estética, mesmo embrionária, uma tentativa de desenho, quando captamos nossa própria imagem frente a um determinado fundo. E voltamos à questão da escola. Seria impossível partir dessa experiência cada vez mais banal, e dar-lhe alguma consciência, inserindo-a na história do retrato? Seria impossível inserir o fundo frente ao qual se posa na história da paisagem? Quantos professores de ensino básico e médio seriam capazes de dar tais aulas, partindo de situações amplamente conhecidas e vivenciadas por muitos? Poucos. O celular é usado como meio por artistas, mas quantos professores de arte (e artistas) percebem a diferença entre curiosidade e arte? A arte é uma atividade de difícil definição.
                A falta de conhecimento dos enigmas e das ambigüidades da figuração influencia sim os equívocos quanto às artes visuais. Afinal, o que se vê mais facilmente são imagens a partir do Renascimento, e idéias toscas sobre sua superação no Modernismo. Se aceita a idéia de semelhança sem ter chance de comparar o retrato com o retratado. Esta experiência poderia ser possibilitada nas mesmas aulas sobre a história do retrato. Aí começariam a aparecer as diferenças e as ambiguidades. É comum a experiência de pessoas que pouco se reconhecem nas fotografias. Já conversei sobre isso com pessoas sem formação específica: mostraram-se perfeitamente capazes de entender os problemas envolvidos.
                Mas creio que existe outro fator mais poderoso para a influência de quadrinhos, videogames, publicidade, etc. no espectador: a multiplicação. Trata-se de imagens naturalmente pensadas para escala de produção elevadíssima, embora haja exceções. Há quadrinhos em edições pequenas, sem o acompanhamento do aparato publicitário. Mas no geral essas manifestações estão facilmente disponíveis, são até inevitáveis, enquanto se pode passar a vida sem entrar num museu ou galeria de arte. Na mesma mídia impressa ou eletrônica, poderíamos encontrar grande quantidade de imagens e informações artísticas, embora de forma desequilibrada, sem a profundidade desejável, e sem tanto acompanhamento da propaganda. Parece-me faltar um conhecimento inicial que estimule e capacite à busca, emancipe, e aí voltamos à questão da escola. Mas o interesse pela arte, no sentido que nós damos a esta palavra, não pode surgir de uma obrigação, nem se determina o nível desse interesse, ou se impede seu surgimento. Pode haver um interesse inconsciente por artes visuais em manifestações mais ou menos próximas, como design de moda, de automóveis, tatuagens, pinturas de pranchas de surf e skate, que geralmente não ultrapassam o anseio programado de originalidade e o símbolo de status. Tal interesse pode conduzir a outros níveis artísticos, mas mesmo com uma informação melhor na escola, creio que muitos continuariam optando apenas pelo entretenimento. Que tem sua importância, do qual por vezes necessitamos, e que pode estar presente sem conflitos em obras de arte autênticas.
                Quanto às mudanças nas Universidades, são difíceis, mas não impossíveis. Houve muitas mudanças significativas, embora ainda insuficientes, desde a implantação dos primeiros cursos de artes. Como chefe de departamento, tive oportunidade de dialogar com pessoas de outras áreas. Muitas se mostraram abertas ao diálogo, compreenderam perfeitamente nossas peculiaridades e nos apoiaram. Mas creio que a iniciativa só pode partir dos departamentos de artes, onde é difícil haver um consenso decidido a favor de mudanças efetivas.
  
2) Eu posso estar enganada, mas me parece que as artes visuais, no Brasil, são as mais elitistas das artes. Isso no sentido de serem as menos compreendidas e apreciadas. O mesmo não me parece acontecer com a literatura, a música, o teatro ou o cinema contemporâneos. Aqui falo mesmo em termos quantitativos: a sensação que tenho freqüentando estes meios é de que a elite cultural que aprecia os assim considerados ‘boa literatura’, ‘boa musica’, ‘bom teatro’ e ‘bom cinema’ é bem menos reduzida do que a dos apreciadores de arte visuais contemporâneas. Também a arquitetura e a dança contemporâneas são mais compreendidas. Creio que essa situação se deva, em parte, à impossibilidade de acompanhar as mudanças que as artes visuais sofreram. Salvo exceções, as elites culturais apreciadoras das artes visuais pararam nas vanguardas modernas ou têm dificuldade em distinguir entre moderno e contemporâneo ou se deslumbram com os modismos equivocados e passageiros nas artes visuais contemporâneas. Hélio Oiticica e Lygia Clark ou Waltércio Caldas e Julio Plaza não são tão conhecidos quanto Tarsila ou Villa-Lobos. Um exemplo rápido que considero esclarecedor: Tarsila e Villa-Lobos têm uma página dedicada na Wikipedia (a enciclopédia livre online), mas Caldas e Plaza não têm. Arnaldo Antunes, Lars Von Trier, Teatro Oficina, Ruy Ohtake ou o Grupo Corpo também têm sua página na Wikipedia. Experimentando buscar os nomes dos artistas contemporâneos brasileiros e de outros países que estão nas exposições de repercussão internacional os resultados se repetem; os brasileiros são os que não têm suas respectivas páginas. Creio que este quadro não seja apenas resultante das desigualdades financeiras para a repercussão das artes visuais nos diversos países, mas também do caráter de atividade desconhecida dos artistas visuais no Brasil hoje... É comum que o leigo ainda pense que o artista é apenas aquele que desenha, pinta ou ‘faz estátuas’ (escultura).  O elitismo das artes visuais é a possibilidade que resta, já que começa no pouco entendimento do que seja arte, existente dentro da própria universidade, que seria um meio social que supostamente deveria legitimar a formação do artista enquanto profissão.

      M.B. - No texto de minha livre-docência, começo citando um texto de Eric Hobsbawm, onde o autor frisa que as artes visuais despertam um interesse minoritário na sociedade. Talvez seja inevitável. As artes visuais têm uma forte tradição ligada à obra única, que muitas vezes tem como destino ser subtraída à visão pública, ao menos por um período. É um objeto que pode ser fisicamente possuído, embora ilusoriamente. Pode ser encomendado e guardado. No limite, com alguma ironia, é viável que o público da obra única seja também único: o comprador. A obra única limita seu público, e vivemos, há muito mais tempo do que parece, uma época na qual as obras podem ser fruídas em casa, embora de modo menos completo. É a multiplicação que torna a obra mais pública, mesmo a única. Há um grande número de tentativas de inserir a obra de arte no espaço público, entendido fisicamente, tentando, ao menos no discurso, não ser mais uma manifestação do poder. Mas o espaço público é também mental, imaterial – começa na percepção. Este é mais difícil de ocupar. Além disso, boa parte dessas tentativas se constitui de obras efêmeras, expostas a outras intervenções ou mesmo à destruição, limitando ainda mais o contato. Muitas acabam sendo colocadas no espaço real da metrópole apenas para sumir, engolidas por uma situação sensorial poderosíssima, evidenciando a falta de conhecimentos de desenho ou de recursos financeiros. O espaço só se expande na medida dos financiamentos. Quando o objetivo é apenas produzir um evento e dar notoriedade aos participantes, no reduzido meio artístico, nada disso é problema. Sempre existe a chancela de algum discurso. Mas quando se pretende de fato estabelecer uma reflexão sobre o contexto urbano contemporâneo, tentando atingir o público real e desavisado, a realização da obra é fundamental.
O fator espetáculo sempre foi uma das principais maneiras de impressionar o leigo. Só se exacerbou em nossos tempos. Geralmente, se apóia nas grandes dimensões, que só são grandes levando em conta a relação de escala com o entorno. Isto é desenho. Das três grandes artes tradicionais – pintura, escultura, arquitetura – só a última guarda intata, ou até amplificada, pelo desenvolvimento tecnológico constantemente aplicado, a capacidade de produzir espetáculos. É fácil ver seu uso contemporâneo a serviço de interesses políticos e econômicos, continuando a tradição. Creio que a possível relação de escala entre pintura, escultura e arquitetura, começa a se esgarçar com a industrialização. Há lugares onde está completamente rompida. E é no contexto urbano das grandes metrópoles, tendente cada vez mais ao gigantismo, onde se concentra o possível público e o interesse em produzir espetáculos, que se pretendem introduzir contra-espetáculos - ou espetáculos outros. Mesmo com o apoio de novas tecnologias e grandes investimentos, a escala permanece demasiado menor. Suspeito que o investimento em arte simplesmente não dá um retorno comparável a um grande empreendimento imobiliário. Existem, é claro, intervenções menos oficiais, mais discretas, independentes ou clandestinas – que podem ser oficializadas – coexistindo no espaço urbano, com desníveis enormes de qualidade artística. São parte de nossa paisagem.
Sou cético quanto à eficiência dos grandes eventos temporários – que precisam ser temporários para gerar sua cota de espetáculo - para produzir algum efeito social apreciável, alguma reflexão a partir da arte. A arte será um meio eficaz para esta finalidade, justamente pelo desconhecimento que registramos? Ela só acontece na medida da recepção do público. Um filme não foi capaz de impedir a reeleição de George W. Bush, mas as reportagens televisivas, veiculadas com freqüência durante anos, tiveram grande papel contra a Guerra do Vietnam. Não será melhor tentar usar as possibilidades dos media, em lugar de pretender transformar a arte em reportagem política? Uma metrópole como São Paulo mal nota iniciativas como Arte Cidade. Qual o poder de alguns meses de uma Bienal de Arte? Os eventos passam, a cidade fica – inalterada. Ou melhor, quem continua agindo, ininterruptamente, são as forças políticas e econômicas que procuram dirigir, bem e principalmente mal, o urbanismo. Acredito mais nas ações cotidianas e discretas, como aulas, livros, internet e conversas. Inserir um trabalho no contexto urbano, com poucas possibilidades de prolongamento interno no público, não produz necessariamente arte pública. Creio que seria mais efetivo tornar toda arte pública, em primeiro lugar através da escola, de maneira emancipadora, permitindo a cada interessado o contato por si mesmo, sem intermediários - por vezes mal treinados - entre o olhar e a obra.
                No entanto, existiriam todas as condições para um contato maior com as artes visuais, através de reproduções de todos os tipos e originais múltiplos. Não que isso substitua a presença de uma obra, mas não esqueçamos o papel do espectador: alguns são capazes de captar mais através de uma reprodução, do que outros frente à obra real. Qual é o nível de envolvimento real de tantos espectadores, com condições plenas de estarem presentes frente ao original, achando “maravilhoso”? Quantos estariam apenas cumprindo uma obrigação social? Não creio existir uma impossibilidade para acompanhar as mudanças no campo artístico. Mas a grande maioria das pessoas não sabe que estão acontecendo, ou não sabe onde poderia se informar, ou só tem conhecimento das conseqüências mais secundárias. Ou simplesmente não se interessa. Para que o interesse deixe de ser minoritário, de novo, a escola pública seria fundamental. Ainda mais no Brasil, onde as reproduções em livros de arte e até o cinema permanecem fora do alcance de muitos. A pirataria cultural teria um lado de democratização, além de ser uma face do crime organizado? A democratização através da imprensa foi efetivada por uma maioria de editoras buscando o lucro. Vejo pessoas comprando pilhas de dvd’s e cd’s legais e ilegais. No meio de tudo, é fácil encontrar filmes e obras musicais importantes. A internet também poderia oferecer informação ilimitada, mas sem o senso crítico formado na escola haverá a transformação em conhecimento?
                A modernidade assumiu bastante uma postura de desafio ou indiferença em relação ao grande público, e a obra única facilita isso. As obras multiplicáveis em grande escala dificilmente podem ignorar os públicos mais amplos. Correm, é claro, o risco de se tornar apenas um empreendimento comercial. Sempre existiram artistas com a consciência de estar trabalhando para poucos, pelo menos durante o tempo de suas vidas, intransigentes com a qualidade de sua obra, ou operando sem buscar fama e repercussão. É digno e ético.  Mas o risco comercial pode continuar existindo, mesmo quando o público se reduz. Comprometer um trabalho, dirigindo-o pela construção da fama, a concessão de bolsas de estudo ou residências artísticas é menos comercial? Não creio que o artista com a capacidade de realizar um trabalho de alto nível deva se limitar, mas também não se pode esperar que, no presente, em curto prazo, tantos se disponham aos esforços exigidos por certas obras. É muito mais provável o desinteresse. Como e porque um público mais amplo se interessaria por questões apenas internas das artes? O sistema das artes visuais opera em circuito fechado. Há galerias com acessos que passam despercebidos ao não iniciado, ou não convidam ao ingresso. O público desejado é o potencial comprador, ou aqueles que determinam o valor da obra exposta. O que é exposição para os já informados pode ser ocultamento para o resto da cidade. Recebi há poucos dias uma edição do Canal Contemporâneo estimando em cerca de 8000 os participantes. É muito para uma rede de relacionamento online? Trata-se apenas de um indicativo, mas dá o que pensar. Será só este o número de interessados em arte contemporânea no Brasil? E também não subestimemos sistematicamente o espectador: alguém não preparado pode simplesmente estar percebendo a falta de sentido, onde um espectador treinado - ou condicionado - projeta sua pretensão de conhecimento.
                Creio que antes de distinguir entre moderno e contemporâneo é preciso distinguir entre o que é arte e o que não é. Lembremos que ao falar em Arte Moderna e Arte Contemporânea estamos incluindo todos seus academismos, que habitam, talvez majoritariamente, os espaços expositivos. Seria muito cômodo se o “academismo” assumisse para sempre as formas canonizadas pelas Academias de Belas Artes. O academismo é uma atitude, não uma forma fixa. Uma atitude extremamente difundida, não restrita à arte, inevitável em alguns momentos, é imitar modelos crendo ser original. No campo artístico, sua forma é camaleônica. Assume a aparência do que permite obter as regalias e poderes possíveis num determinado momento. Nem todas as Academias de Belas Artes merecem ser entendidas em sentido pejorativo, nem sempre foi uma instituição retrógrada. Mas durante largos períodos ser acadêmico era condição para ter acesso, por exemplo, às melhores encomendas ou às formas vigentes de residência artística no exterior. Hoje, é preciso apresentar-se com uma roupagem contemporânea extrema. Não deve haver nada que explicite o academismo, a não ser, é claro, a própria obra (para quem puder e quiser perceber). A academia hoje não tem domicílio definido num edifício neoclássico e não se assume, mas existe. E não esqueçamos também que o academismo não é privilégio do artista, mas se estende a críticos, curadores, historiadores, galeristas, professores e outros artistas, e todos que controlam o acesso e a permanência no circuito artístico. Estes criam os interesses que norteiam o artista acadêmico. Uma obra nem sempre é exposta por suas qualidades, mas também por uma rede de relações pessoais, de interesse, julgamentos apressados, enganos, modismos, limitações mentais. A não ser que acreditemos viver numa época em que todos os artistas estão radicalmente comprometidos com seu trabalho, críticos e curadores clarividentes e constantemente íntegros, e não haja meios privilegiados pela sua capacidade de gerar espetáculos. Não há nada novo ou contemporâneo nisso, mudam os modelos a se imitar. A “academia”, há tempos, tende a ser duchampista, a pior coisa que poderia ter acontecido a este artista. Academismo é tentar transformar a dúvida em garantia.
  
3) Quando você afirma: “No caso das artes visuais há um componente intelectual inevitável, mesmo sem buscar outras conceituações: o desenho entendido como pensamento visual, compreensão, organização ou desorganização do espaço, olhar qualificado que recebe e projeta”, você parte do pressuposto de que o desenho seja primordial às artes visuais.  E há quem no próprio meio da arte discorde. Esta situação de desacordo a respeito disto em que os próprios artistas se encontram contribui para a confusão sobre o que são as artes visuais hoje ou sobre o que faz o artista. Muitos artistas visuais hoje sejam eles participantes ou não, do círculo acadêmico, não percebem uma necessidade de um pensamento visual e inclusive assumem não saber desenhar ou não praticar o desenho em nenhuma das suas inúmeras formas. A incapacidade da qual você fala, de analisar visualmente uma imagem por parte dos acadêmicos, é também uma incapacidade de muitos dos que se denominam artistas visuais. Estes compartilham da visão de insuficiente intelectualidade da arte que, conforme você identifica: “se enraíza no histórico menosprezo pelo trabalho manual, pelas artes mecânicas e pelo conhecimento sensível e material” e se esquecem ou não percebem que “técnica é cultura”, acreditando que a única forma de arte legítima é aquela cujos projetos se embasam em conceituações teóricas, desconsiderando que a materialização de um objeto ou imagem seja um processo de pensamento que exige concentração e conhecimento e que produza conhecimento tanto para o artista quanto para o público. Inclusive, antes desta situação atual das artes visuais, houve quem defendesse algo quase oposto. Citando um exemplo controverso na academia, para Rudolf Steiner é preciso visualizar para meditar e a meditação é uma forma de exercitar o pensar. Neste caso, visualizar vem antes do raciocínio elaborado pela palavra, a palavra seria o reconhecimento do raciocínio visual, do raciocínio primeiro (o conhecimento). Seria quando o raciocínio visual no trabalho de arte é secundário é que se perde a dimensão pública da arte? Como a criação de públicos especializados dificulta as finalidades da universidade?

M. B. - Primeiramente, o desenho faz parte da visão, da mente e do corpo, não está confinado à arte.  É usado constantemente, mas sem consciência e conceituação. Pouco se percebe o deslocamento do corpo no espaço como desenho, os roteiros e projetos feitos e desfeitos, o ato de se vestir, as mudanças qualitativas da experiência visual na metrópole, as mudanças de luz e espaço com o passar das estações.
                Depois, existem pouquíssimos cursos em São Paulo e no Brasil onde o desenho é discutido com a profundidade necessária. É perfeitamente possível formar-se em artes visuais, fazer pós-graduação e participar do circuito artístico sem entender o que é desenho. Nos cursos de História da Arte, em geral, pouco se vê o desenho como realização gráfica independente e pensamento visual. Quase tudo gira em volta da pintura e da escultura.
                Para entender de fato o desenho é preciso usá-lo como maneira de buscar e visualizar o próprio pensamento, meio de realização de projetos, instrumento da dúvida. Cursos não podem dar mais que uma fundamentação básica, a ser desenvolvida na medida das necessidades. Não é difícil perceber como é pequena a quantidade de alunos formados em artes visuais com um real conhecimento do desenho. Muitos se limitam a praticá-lo como obrigação nos cursos específicos, que poderiam ter um papel emancipatório se as buscas continuassem de forma independente.
                É fácil notar que boa parte das artes visuais recentes é transposição de conceitos verbais para o plano visual. Para alguns artistas, é mais importante a apresentação ao público certo do que o próprio trabalho. A diferença é grande em relação ao pensamento visual. É comum perceber que boa parte dos artistas visuais tem noções parcas do desenho, a ponto de concebê-lo, hoje, nos moldes da academia de Belas Artes, inevitavelmente ligado à figuração, dependente apenas de técnicas gráficas, oposto à pintura, aparentemente imutável, desligado da história. É a este desenho que se referem ao considerá-lo dispensável hoje. Não conseguem pensá-lo como uma língua viva, totalmente conectado com o dinamismo do pensamento de um artista, presente em qualquer meio. É uma confusão semelhante à dos leigos com a figuração, porém mais grave, tratando-se de especialistas. Ao ouvir certas referências negativas ao “desenho do Séc. XIX” tenho a impressão de ouvir uma crítica à academia do séc. XIX pela academia dos sécs. XX e XXI. E não posso deixar de sorrir quando ouço falar na “questão da linha”. Ela é um elemento básico e cotidiano de pensamento visual, expressão visível de um processo sensorial e reflexivo de busca e construção, como a linha do mesmo lápis em busca do texto. Sua presença é tão constante que quase se esquece. As verdadeiras questões são bem maiores. Se a linha vira questão a arte anda muito pequena.  
                Há outra questão, esta sim real, que me parece afetar o estudo do desenho. É onde a incapacidade se mostra mais clara e dolorida. Torna-se evidente demais a necessidade de esforço e persistência para conseguir ampliar os limites. Ora, aproximadamente no início dos anos 80, foi sendo forjado o mito do sucesso a curtíssimo prazo, que partindo da área financeira foi agigantando as proporções do imediatismo. O meio artístico é sensível a este tipo de sucesso, e tal atitude dificilmente deixaria de se infiltrar. O desenho se opõe naturalmente à pressa, e também não garante nada além de alguma habilidade a praticantes mais pacientes, porém sem inquietações. Mas o desenho é uma capacidade a serviço de um fim, tanto chave quanto trava para a expressão; limite ético, confronto com o mundo, obstáculo necessário na rota do conhecimento, como qualquer linguagem.

 4) Na sua tese você fala em diversos momentos em ‘rigor’, ‘rigor íntimo’, ‘verdadeiro rigor’, ‘rigor possível’. Como definir isso para quem não reconhece o raciocínio visual?

                      M. B. - O rigor, a meu ver, deveria começar por uma indagação contínua: existe mesmo a necessidade (que não tentarei definir) de tentar e continuar a tentar fazer “arte”? Ninguém é obrigado a ser artista sem a necessidade de sê-lo. Ninguém precisa ser artista a vida inteira. Quem o é talvez só sirva para isso. Creio que sempre houve gente demais se aventurando a ser artista por motivos pequenos. E, claro, a aspiração sincera nada garante. Só aumenta os riscos.                            Optando-se pela tentativa, o rigor continua na escolha de meios/técnicas/materiais/ações a serem efetivados, a fim de que o desejo, a idéia deflagradora não se percam totalmente. Parece-me inútil tentar estabelecer um procedimento geral para as operações artísticas: não há artista genérico. Mas sugiro que estas escolhas já são desenhos, nos vários sentidos possíveis.
                O mesmo rigor de um texto está implícito nesse processo, já que se trata de uma linguagem poética literalmente materializada. Como em toda linguagem, tudo significa. O possível sentido da obra realizada depende de todos os atos realizados. Podemos pensar numa forma em movimento, onde materiais, técnicas, instrumentos - ou sua omissão – se integram ao pensamento como a escrita verbal. É neste rigor que Duchamp se diferencia dos duchampistas. Se o seu uso dos procedimentos não fosse preciso, as operações mentais não se completariam, e não haveria tanto interesse pelas interpretações.
               A colagem é um dos grandes princípios de desenho, não sua negação. Longe de ser uma simples acumulação ou justaposição, demanda o mesmo rigor de um retrato. Selecionar e reorganizar imagens e/ou objetos de naturezas diferentes, e tudo o mais que o conceito de colagem abarca, solicita um olhar tão educado quanto qualquer forma de desenho, e muitas vezes mãos hábeis. Sempre se trabalhou também a partir de outras imagens, inclusive como apropriação. Selecionar o objeto da apropriação não é uma forma de desenho? Interpretar imagens de outra natureza, fotografar o fluxo da televisão, pintar partindo de imagens coletadas na internet não é desenhar?  Perceber aspectos no caos urbano capazes de deflagrar uma ação artística, relacionar escalas no espaço real para uma possível instalação, levar em conta o contexto visual onde o graffite vai ser pintado, não seriam atos de desenho? Se houvesse mais competência, talvez não se ajudasse certos arquitetos a degradar nossa cidade com a repetição dos piores modelos internacionais.
Mas concordo que arte como “sacadinha” não precisa de desenho.
Mas a arte é uma atividade de difícil definição...

____________________
Perguntas para os artistas da Exposição Energias na Arte – Instituto Tomie Ohtake:

FLORA ASSUMPÇÃO
PROJETO SERPENTES DE PRATA, 2008-2010


Qual é sua formação? Comente sua trajetória.
Sou formada em artes visuais no Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP, com especialização em gravura (2007). Iniciei minha produção em artes por meio do desenho e da pintura. Desde 2002 me interesso pela extensão da escala do desenho para o espaço arquitetônico e tenho experimentado diversos materiais, técnicas e linguagens. Mantenho reflexão e prática direcionadas à pesquisa em desenho e em ocupação de superfícies bidimensionais e, paralelamente, desenvolvo projetos de instalações para arquiteturas específicas e de instalações para espaços expositivos, explorando a relação do desenho com escalas arquitetônicas para a criação de ambientes ficcionais com a intenção de provocar experiências imersivas de caráter poético.


Como você situa o trabalho selecionado dentro da sua produção? Ele foi realizado especialmente para o edital Energias na Arte?
Meu trabalho (Projeto Serpentes de Prata, 2008/2010) é um desdobramento de diversas questões que eu já vinha trabalhando desde 2007 ou até mesmo antes. Eu me refiro não apenas à temática das serpentes e à atmosfera de ficção, mas também à escala do trabalho e a situação do embate da dimensão física do trabalho com o tamanho do corpo do espectador e a relação com a arquitetura.


Quais questões te levam a produzir? Quais questões o seu trabalho pode gerar?
Eu considero esta pergunta bem difícil de ser respondida com total precisão, porém, bem resumidamente, sei que parto da minha experiência de observação do mundo e de como eu me insiro nele.
Meu trabalho (como todo trabalho de arte) pode gerar muitas questões além daquela a qual eu me proponho quando crio o trabalho. E isso não é problema, desde que se possa perceber/verificar no trabalho também a intenção do artista além das questões suscitadas pela experiência individual do espectador.
Por exemplo, sei que meu trabalho pode soar bastante feminista, pois constantemente utilizo elementos da natureza como serpentes, nuvens, o mar, a neblina, o luar, a tempestade, o furacão etc. No entanto, me interessa muito mais do que um discurso feminista, o embate do humano com a natureza, que é algo que não se pode controlar, algo com vontade alheia a nós. Interessa-me a insegurança provocada pelo receio do inesperado que é a vontade e/ou a força alheia a nós, incontrolável por nós. Interessa-me o receio provocado pelo desconhecido. Minha referência constante a lendas e mitologias e o caráter algo sobrenatural e fantástico de minhas criaturas-máquinas evidenciam a possibilidade do perigo.                          


Como você insere a sua produção na contemporaneidade? Quais são as suas referências?
Acredito que minhas referências digam muito de como minha produção se insere na contemporaneidade. Acho que sou de uma vertente que carrega uma poética cheia de algo que eu entendo por lirismo. Eu sou pela poesia, pela metáfora, pela ficção, por menos literalidade. Acredito que, em arte, se pode dizer (e fazer) muito por vias indiretas, através do estímulo ao desenvolvimento cognitivo e da percepção para a formação do indivíduo e que Eu não quero que meu trabalho de arte seja uma ilustração/citação ou solução (ineficaz) de questões sócio/econômico/ambientais da atualidade e/ou do próprio meio da arte. O bom trabalho de arte tem o que for necessário disso tudo e um ‘algo mais’ que é único.
Minhas referências são visuais, não teóricas e expressas através da linguagem da fala. São minhas referências a obra de outros artistas com os quais eu ‘dialogo’ através de minha própria produção de arte.
Entre os vários artistas que me motivam, além de diversos arquitetos, estão: Regina Silveira, Ana Maria Tavares, Marco Buti, Olafur Eliasson, Carlos Fajardo, Iran do Espírito Santo, Anish Kapoor, Dan Graham, Liliana Porter, Christo Javacheff, Tony Cragg etc.


Se você fosse falar sobre seu trabalho para uma criança pequena, como o faria?
Acho que meu trabalho não precisa ser explicado a uma criança, pois ele tem grande estímulo visual e acho que é isso que é importante no meu trabalho e também o que torna a mediação de um adulto secundária para o meu trabalho despertar ou não o interesse em uma criança. Eu considero que em artes visuais o trabalho tem que se dar/ acontecer, no âmbito do que é visual. A palavra é acessória. O conhecimento e a percepção visuais são linguagem à parte da fala; independem desta.
Claro que eu estou ciente de que as artes visuais mudaram e mudam ainda muito e que o público leigo não pôde e não pode acompanhar, de modo que a mediação da palavra se faz necessária. Desacreditar a necessidade da mediação da arte-educação, do curador ou do próprio artista, hoje, é quase utópico.
Mas eu estou dizendo que as artes visuais não são meras ilustrações para a linguagem falada, pois são uma linguagem por si próprias e não podem sempre ser traduzidas, fiel e precisamente, pela linguagem da falavai influenciá-lo em toda a atividade que ele realizar em sociedade.


São Paulo, 09 de agosto de 2010.
Perguntas elaboradas pela Equipe de Educadores do Instituto Tomie Ohtake